Saturday, December 22, 2007

História de como Thai Q. Nghia chegou do Vietnã ao Brasil e prosperou

http://www.catho.com.br/jcs/inputer_view.phtml?id=8746
Entrevista
GOÓC: FILOSOFIA VIETNAMITA E CORAÇÃO BRASILEIRO

* Naísa Modesto


No final dos anos 70, Thai Q. Nghia chegou ao Brasil sem falar uma
palavra de português, sem dinheiro ou parentes. Com grande
determinação, construiu a Goóc - empresa que cresceu 300% desde o
início, em 2004, tem 5 mil pontos-de-venda espalhados pelo Brasil, 15
lojas próprias e exporta a linha de bolsas, calçados e roupas para
mais de 20 países.

Com uma fábrica em São Paulo (SP) e outra em Feira de Santana (BA), a
empresa já reciclou o equivalente a 400 km de pneus usados –
matéria-prima para a confecção dos solados das sandálias.

"Cada cidadão brasileiro terá um par de chinelos Goóc", projeta o
vietnamita, que quer comercializar 210 milhões de pares até 2014.

Com jeito bastante simples e sotaque indiscutível, Thai Q. Nghia
recebeu na unidade paulista da empresa o jornal Carreira & Sucesso e
contou detalhes de sua incrível trajetória de vida:

Newsletter Carreira & Sucesso: Como você chegou ao Brasil?
Thai Q. Nghia: Fugi do Vietnã em 1978 e fui recolhido por um navio
petroleiro brasileiro. Quando cheguei ao Brasil, no Rio de Janeiro
(RJ), fiquei numa pensão com outros refugiados com ajuda da ONU
(Organização das Nações Unidas). Fiquei sob os cuidados da Cruz
Vermelha por 40 dias e depois fui para São Paulo. Fiquei na Igreja
Nossa Senhora da Paz, no Glicério (bairro da capital paulista), com
outros imigrantes. Naquele alojamento, tinha de ficar fora o dia todo
e só voltava à noite. Em algum momento, acabava perambulando pela rua.
Como sempre gostei muito de estudar, com o primeiro dinheiro que
consegui juntar comprei um dicionário para começar a me
profissionalizar e estudar a linguagem. No começo foi muito difícil,
não entendia nada, não conhecia ninguém. Vim sozinho para o Brasil,
não tinha parentes aqui. Passei muito frio também, até usava jornal
embaixo das roupas, comia macarrão instantâneo todos os dias, à noite,
e durante o dia comia pão com mortadela.


C&S: Quais são as outras dificuldades de adaptação que enfrentou?
Nghia: Não foram só as dificuldades tangíveis, mas também as
intangíveis - como a saudade. Isso mata a gente. Você se sente
anestesiado, perdido, desmotivado. Mas aquele momento em que saí do
Vietnã já mentalizava que estava à procura de liberdade. Isso eu
conquistei, mas em condições muito precárias. Mesmo assim, senti que
isso era uma necessidade para mim, tinha de fazer a minha vida. Essa
sensação de enfrentar as dificuldades é muito maior do que qualquer
outro problema que você pode enfrentar.


C&S: Qual foi seu primeiro emprego no País?
Nghia: Comecei tirando fotocópias. Ficava lendo para aprender,
traduzir e acabei acostumando com a língua. As coisas melhoraram e
três anos depois eu passei no curso de Matemática da USP (Universidade
de São Paulo). Em 1986, estava estudando e trabalhando quando
emprestei dinheiro a um amigo. Era o final do Plano Cruzado, ele
quebrou e fez o pagamento do empréstimo com bolsas. Fui obrigado a
sair na rua para vendê-las para recuperar o dinheiro. Vendia as bolsas
em Cotia (SP) e Itapevi (SP) e comecei a ganhar dinheiro com isso.
Pensei: "isso é legal!". Passei a comprar mais bolsas e continuei
vendendo. Um tempo depois, achei melhor parar de trabalhar e pedi
demissão. Não me deixaram sair. Em vez disso, queriam me promover. Saí
assim mesmo e decidi montar meu negócio. O trabalho foi tomando tanto
meu tempo que não conseguia me concentrar nos estudos e abandonei o
curso no terceiro ano.


C&S: Como surgiu a Goóc?
Nghia: Visitava meus parentes em outros países – Estados Unidos,
Austrália, Vietnã, França – e, quando estava em Paris, fui a um museu
em que, entre outras peças, havia um tambor. Percebi que por trás do
instrumento havia uma longa história, uma resistência. Além disso,
existe uma concepção artística muito forte e marcou todas as
atividades antigas, como caça, cerimônias, funerais. Resolvi divulgar
minha cultura. No Vietnã, as pessoas usam chinelo, aqueles da época da
guerra, com sola de pneu. Trouxe isso para o Brasil porque achava que
era uma ótima idéia e um bonito projeto. Comecei a pesquisar sobre o
solado de pneu reciclado e ofereci ao mercado. No começo, os lojistas
não aceitaram muito bem porque julgavam que os chinelos tinham uma
concepção estética muito estranha. Mas o jovem entendeu o escopo,
conseguiu se identificar com o produto e passou a procurar a marca.
Aí, sim, os lojistas começaram a nos procurar para querer comprar o
produto.


C&S: O que quer dizer Goóc?
Nghia: Raiz.


C&S: A que o senhor atribui o crescimento da marca?
Nghia: Primeira coisa: acho que tivemos coragem de sermos diferentes e
de quebrar paradigmas. Temos outro padrão estético. Consegui criar
alguma coisa que se alinha com a mentalidade do País. Os brasileiros
são pessoas boas, que aceitam a diversidade e celebram as diferenças.
As pessoas que têm afinidade com a marca conseguiram captar isso.


C&S: E essa preocupação com o meio ambiente, de onde vem?
Nghia: O que mais importa para mim não é a questão ambiental em si,
mas ser diferente, ter liberdade, escolher seu caminho. Também é
importante a inclusão, aceitar o que as outras pessoas não aceitam,
como o lixo. Trabalhar com um material que ninguém quer mais - neste
ponto entram as questões ambientais. Espero do meu produto não somente
que ele dê conforto para as pessoas, nem que dê status a elas, mas que
passe uma mensagem de questionar, provocar, pensar de uma maneira
diferente. Quero mostrar que passamos por muitas dificuldades para
alcançar nossos objetivos, nossos sonhos.


C&S: Durante minha visita pela fábrica, percebi que em todos os
lugares encontramos faixas com mensagens motivacionais. Uma delas
dizia que é preciso identificar as nuvens, beber a água da fonte e
pedir ajuda. O que isso quer dizer?
Nghia: Beber água da fonte é porque na comunicação costumamos ouvir
interpretação em cima de interpretação, e não pegamos a informação
direto da fonte. Isso gera vários desentendimentos. Por isso, não
pegue a interpretação, beba na fonte. A outra frase fala sobre
identificar nuvens: acho que a função de qualquer gerência é prever e
identificar ameaças, se são temporárias ou prolongadas. Cabe ao
coordenador identificar que tipo de crise é essa que está chegando.
Além disso, é importante pedir ajuda, dizer "não sei, por favor, me
ajude". Há muitas pessoas que não estão dispostas a ajudar e outras
que não têm coragem de pedir ajuda.


C&S: Depois de ter conquistado tantas coisas importantes, ainda tem
algum sonho a ser alcançado?
Nghia: Quero voltar a estudar. Para os próximos anos, queremos atingir
210 milhões de produtos para o povo brasileiro. Estamos exportando
muito bem, crescemos bastante com as exportações, mas nosso foco é o
Brasil. A longo prazo, quero descansar e cuidar da minha vida.


C&S: Já que o senhor mencionou as exportações, como foi decidido levar
os negócios para fora do Brasil?
Nghia: Participamos de uma feira no Anhembi (centro de exposições em
São Paulo) e lá tivemos contato com muitos compradores que gostaram do
produto. Eles entenderam rapidamente o propósito da nossa marca, viram
as diferenças no nosso conceito, a simbologia. Talvez os estrangeiros
dêem mais valor a isso. Os compradores vieram ao nosso encontro, não o
contrário. Mas, volto a dizer, nosso foco não é fora do País, é aqui!


C&S: Se tivesse que eleger um produto que fosse o carro-chefe da
empresa, qual seria?
Nghia: O primeiro projeto a gente nunca esquece (risos)! O nome do
produto é Yepp. O modelo tem a história do povo vietnamita, de luta,
de identidade. Temos outro produto que tem uma cara mais brasileira, o
K-Zero. É bem simples, despojado. Acho muito bonito. São poucos
produtos que me deixam plenamente satisfeitos, mas este tem uma
harmonia muito legal.


C&S: Quais características pessoais o senhor julga determinantes para
seu sucesso?
Nghia: A primeira coisa é gostar de ler. Quando eu sentia que estava
perdido, que estava faltando alguma coisa, recorria aos livros.
Tentava procurar respostas, não uma, mas várias. Foi isso que me
ajudou. Não digo que isso leva ao sucesso, acho que é uma vantagem que
tenho com relação a outras pessoas. Outra coisa: gosto muito de
desafios. Quando eu acredito em uma coisa, pode me machucar ou me
fazer sofrer, mas eu sigo em frente. Muitas vezes estou errado, mas
quando isso acontece, tenho que mudar rapidamente de estratégia.


C&S: Da sua cultura vietnamita, o que trouxe para o Brasil?
Nghia: Muito legal a sua pergunta. Sabe, eu não sabia que minha vida
era assim. Eu não enxergava tudo desse jeito. Depois que passei a
conversar com os jornalistas, escutar as perguntas e pensar nas
respostas, fui montando um filme da minha vida. Achava que era uma
vida como qualquer outra, mas depois passei a perceber que tinha
algumas diferenças mesmo. Com essa pergunta, você me ajuda a
fundamentar os acontecimentos. No Vietnã, havia um poeta muito famoso
que teve uma vida que eu admiro muito. Foi uma pessoa que não se
apegava à glória ou renome, uma pessoa muito independente. Ele tentou
por mais de 20 anos entrar para o exército, conseguiu pertencer ao
alto escalão e depois foi rebaixado a soldado. Quando perguntaram para
ele como via aquela situação, ele disse: "Quando eu era general, não
achava que isso era a glória. Por isso, agora que sou soldado, não
acho que sou mais humilde". Ele provou ser assim ao longo da vida.
Essa simplicidade me inspira muito. Aqui na empresa, não acho que
status é uma coisa importante. Sempre sento com os funcionários - eu
não tenho sala. Hoje sento em uma mesa, amanhã em outra... Converso
com todos, estou sempre andando pela fábrica. Só vejo meus e-mails à
noite. Acho que essas coisas eu aprendi com a cultura do Vietnã. Tento
passar isso para as pessoas. Você não é chefe para ter status, mas
para ensinar e transmitir conhecimento, isso é o mais importante.


C&S: Se pudesse resumir com uma palavra sua trajetória, qual seria?
Nghia: Pode parecer incrível, mas resumiria em "fé".


* Naísa Modesto é jornalista da Catho Online. Tel.: (11) 3177-0700
ramal 124.

No comments: