Friday, December 21, 2007

Lula: “Temos que sonhar com a nova geração”

http://www.consciencia.net/entrevistas/lula.html

Lula: "Temos que sonhar com a nova geração"
O Pasquim 21 [número 02]

Ziraldo - Pra começar, Lula, eu gostaria de ouvir uma análise sua a
respeito do que está acontecendo no Brasil, agora. Como é que você se
posiciona diante das coisas, com essa candidatura do José Serra
pintando? Quais são as expectativas?

Luiz Inácio Lula da Silva - No Brasil, está acontecendo o que sempre
aconteceu. Eu ontem ouvi, na íntegra, o balanço de sete anos de
governo de Fernando Henrique Cardoso e desliguei a televisão
convencido de que Fernando Henrique Cardoso não é presidente do
Brasil. Ele deve estar presidindo algum outro país, porque segundo ele
não há problemas no Brasil, não há problemas de saúde, não há
problemas econômicos, não há problemas de infra-estrutura. Ou seja,
ele fez tudo o que precisava ser feito. Só faltou pedir pra continuar
pra fazer um pouco mais. Isso é um pouco da história de nosso país. A
elite brasileira talvez seja, do ponto de vista político, a mais
competente do mundo. Acho que poucas vezes uma nação produziu uma
elite tão competente quanto a brasileira, no que diz respeito a se
perpetuar no poder. Eles conseguem, dentre eles mesmos, parir alguém
que pareça diferente para continuar fazendo tudo igual. Isso vem desde
a luta pela independência do país e continua com Fernando Henrique
Cardoso, como ele disse ontem: "O Brasil melhorou muito; não tanto
quanto gostaríamos, e por isso é preciso haver continuidade do meu
governo". A elite, neste momento, está tentando criar as condições
objetivas de continuar, mesmo com cara diferente, com discurso
diferente. Eles são capazes até de indicar alguém que não concorde com
a totalidade da política econômica do governo. O importante é que eles
têm que continuar. Ao mesmo tempo, uma certa parcela da sociedade tem
medo de mudanças, do novo. As pessoas, no fundo, no fundo, são
conservadoras, são acomodadas, dizem: "Deixa ficar como está pra ver
como é que fica". Uma parte do povo pensa assim, e isso é doloroso pra
quem faz política a vida inteira, querendo mudar a situação do Brasil.

Marilda Varejão - Vamos ser bem objetivos. Se você é eleito, o que é
que vai mudar nesse país?

Lula - Eu acredito que, com o PT eleito, muita coisa muda. Nestes dias
li um artigo genial do Luiz Fernando Verissimo, onde ele dizia: "Do
último Bragança ao primeiro Silva". Só o fato de esse país eleger
alguém que não pertença à árvore genealógica dos 'Bragança' já é uma
ruptura com as tradições políticas desse país, já é uma novidade
excepcional. Além disso, um partido como o PT tem compromissos com
raízes históricas. O PT sabe que se não colocar as coisas em prática,
não valeu a pena tudo o que fizemos. As reformas são aquelas que há
muitos anos se tenta fazer no país, que vêm desde o tempo da luta
contra a escravidão, da luta pela independência... São reformas que já
foram feitas em todos os países do mundo, sem as quais nada dá certo.
Vamos pegar algumas coisas substanciais: a questão da reforma
agrária, por exemplo. Nesse país, não é uma questão de agradar ao
sem-terra ou agradar ao fazendeiro, é uma questão de justiça social,
questão de detectar quais são as pessoas que têm vontade de trabalhar
no campo, mapear quais são as terras produtivas que não produzem, por
incompetência dos donos ou do próprio governo, e fazer com que essas
terras sejam repartidas da forma mais justa possível. É preciso
garantir que a população fique na sua terra natal. Há um princípio
para a agricultura, que hoje domina quase todos os países europeus, no
qual nós precisamos acreditar. Você tem cinco pressupostos que são
fundamentais. Primeiro: manutenção das pessoas na sua terra natal.
Isso diminui favelas, diminui o inchaço das grandes cidades, a
prostituição, a violência. Segundo: geração de empregos. Terceiro:
melhoria da qualidade do alimento produzido. Quarto: ocupação correta
do nosso território. Quinto: preservação ambiental. São coisas
elementares, nas quais todo e qualquer governo que se preze tem que
pensar. Depois tem a questão da educação. Não há nenhuma saída para o
Brasil se a gente não acreditar que a educação é a base fundamental de
garantia a todos os seres humanos, independentemente da sua origem
social, em igualdade de oportunidade. Para isso você precisa voltar a
ter uma escola pública de qualidade, como nós já tivemos nas décadas
de 50 e de 60. Quase todos os grandes intelectuais brasileiros fizeram
escola pública. Hoje, é muito difícil, para uma criança que está na
escola pública, ter condições de competir com uma criança que está no
Santa Cruz [colégio de elite paulistano], a não ser que seja um gênio.

Caco Xavier - E qual é a grande reforma, ou a mais urgente, que é
preciso fazer no país?

Lula - A grande reforma que temos que fazer no país é a seguinte: uma
grande inversão de prioridades. Ou seja, a começar pelo orçamento da
União, da distribuição das verbas nas instituições financeiras que
investem nesse país, que vai do BNDES à Caixa Econômica Federal e ao
Banco do Brasil, você tem que redefinir quais os critérios e quais os
segmentos da sociedade que terão acesso a esse dinheiro e sob quais
condições. Deve-se partir do pressuposto de que cada centavo que o
Estado investir visará à geração de emprego, à melhoria da qualidade
de vida das pessoas. O dinheiro do Estado tem que visar a uma coisa
socializante, como a mãe faz dentro de casa. Uma mãe não permite que
um filho coma dois bifes, se só tiver um pra cada um. Pode ser o
caçulinha, pode ser o mais dengoso, pode chorar e espernear. Ele vai
ganhar uns cascudos, mas vai ter que deixar um bife pro outro. Esse é
um princípio elementar que deve nortear a definição de prioridades do
governo e a ação do governo. Quando você chega ao poder, as pessoas
que te cercam não são as pessoas que te deram tapinhas por teus
discursos na campanha. Quando você está numa campanha, no palanque,
você só fala de pobre, de miséria, de mulher, de negro, de favelado.

Caco Xavier - E qual é a grande reforma, ou a mais urgente, que é
preciso fazer no país?

Lula - A grande reforma que temos que fazer no país é a seguinte: uma
grande inversão de prioridades. Ou seja, a começar pelo orçamento da
União, da distribuição das verbas nas instituições financeiras que
investem nesse país, que vai do BNDES à Caixa Econômica Federal e ao
Banco do Brasil, você tem que redefinir quais os critérios e quais os
segmentos da sociedade que terão acesso a esse dinheiro e sob quais
condições. Deve-se partir do pressuposto de que cada centavo que o
Estado investir visará à geração de emprego, à melhoria da qualidade
de vida das pessoas. O dinheiro do Estado tem que visar a uma coisa
socializante, como a mãe faz dentro de casa. Uma mãe não permite que
um filho coma dois bifes, se só tiver um pra cada um. Pode ser o
caçulinha, pode ser o mais dengoso, pode chorar e espernear. Ele vai
ganhar uns cascudos, mas vai ter que deixar um bife pro outro. Esse é
um princípio elementar que deve nortear a definição de prioridades do
governo e a ação do governo. Quando você chega ao poder, as pessoas
que te cercam não são as pessoas que te deram tapinhas por teus
discursos na campanha. Quando você está numa campanha, no palanque,
você só fala de pobre, de miséria, de mulher, de negro, de favelado.
Mas quando você ganha, quem tem acesso a você é o banqueiro, o
empresário, o agiota, o FMI, os deputados.E essa gente é que determina
a sua cabeça.Nossa cabeça pensa de acordo com o chão que nossos pés
pisam. A demanda não é mais o povo, que está gritando de longe e o
governo não ouve. Uma vez no poder, ele vai almoçar com banqueiro,
jantar com não-sei-quem. Essa gente é que vai redefinir as prioridades
do Estado.
É por isso que a gente vê tanto dinheiro sendo jogado fora. Outro
dia, constatei uma coisa. Fui a um projeto chamado Base Zero, na
cidade de Afogados de Ingazeira, em Pernambuco. Nesse projeto, o cara
consegue fazer uma barragem por R$ 100, 00, R$ 200,00, mas que dá pra
armazenar água em baixo da terra durante o período da seca. Esse
cidadão já mandou esse projeto pra dezenas de governadores, e não
conseguiu nada. Lá naquela terra, as pessoas ganham R$ 200, 00 por
mês. Saindo de lá, você vai a Camaçaribe, onde a Monsanto conseguiu
pegar do Estado quase R$ 800 milhões pra gerar 300 empregos. Ou seja,
se você fosse investir, criaria 157 mil novos empregos. Mas prefere-se
criar 300 empregos para uma multinacional que poderia vir para o
Brasil trazendo recursos de fora, e não pegando dinheiro público. Vou
dar um outro exemplo: a companheira Marta Suplicy resolveu utilizar 5%
dos 30% da Educação para cuidar da Educação. Acontece que as pessoas
ligadas à Educação no Brasil, pessoas que nunca souberam o que é uma
criança não ter uma roupa pra ir pra escola, não ter dinheiro pra
pegar um ônibus pra ir pra escola, não ter uma área de lazer na
escola, essas pessoas acham que tudo isso não é gasto com Educação. Eu
dizia, numa entrevista, outro dia: "Vocês não sabem o que é uma
criança ir pra escola, como eu ia, em 1957, com um suspensório amarelo
e outro azul porque não tinha duas tiras de pano da mesma cor em
casa". E quando aparece alguém que pega dinheiro pra investir nessas
coisas, vêm outros e dizem: "Mas isso é investimento em Educação?" É
lógico que é. Essas pessoas não têm noção do que é uma criança receber
no início do ano o seu caderno, o seu lápis, a sua brochurazinha, por
conta do Estado. Tem setores da Educação que acham que o dinheiro da
Educação deve ser gasto apenas em salários. Por isso eu digo a você
que a sociedade é conservadora, que setores dentro da sociedade são
corporativos e conservadores, que a esquerda é conservadora. A CLT
está aí desde 1946 e você não consegue mudar, porque grande parte dos
dirigentes sindicais não querem que mude. Você passa a vida inteira
dizendo: "A estrutura sindical brasileira é cópia fiel da Carta de
Lavoro de Mussolini", mas vê se os dirigentes sindicais querem mudar?
Você pega o sindicato dos bancários, os sindicatos metalúrgicos do
ABC, esses querem mudar, mas a maioria não quer. As pessoas têm medo
das mudanças, e essas mudanças só acontecerão se o PT vencer as
eleições, estou convencido disso. Acho que o PT é, atualmente, a única
possibilidade de se construir um novo contrato social nesse país.

Ziraldo - Também não tenho dúvidas. Mas como é que se explica isso
para a classe média brasileira, que é o maior contingente eleitoral?
Uma coisa acontece quando eu digo que sou PT desde criancinha. As
pessoas falam: "O Lula é ex-operário, nunca administrou, não entende
nada disso". Mas eu costumo dizer que você tem mais de 20 anos de
política. Será que ainda não aprendeu nada? Isso não deve valer por
umas quatro ou cinco faculdades?

Guilherme Salgado Rocha - O IBGE apontou, no mês passado, 17 milhões
de analfabetos em todo o Brasil, e o pior índice foi o de Alagoas. E a
gente sabe que o Maranhão tem os piores índices sociais do Nordeste.
Você acha que esse 'exército eleitoral de reserva', aí, vai ser usado
novamente, está pronto pra ser novamente manipulado?

Lula - Olha, não é pelo fato de o cara ser analfabeto que ele é
manipulado. O cara muitas vezes é manipulado pela fome. Se o cidadão,
quando vai votar, lembra que não tomou café da manhã, que não almoçou
o ano inteiro, esse cidadão não reage com a consciência, reage com o
estômago. É por isso que no Brasil se cria muita cesta básica em vez
de dar em salário, que é muito mais digno. Acho que o problema não
está na classe média. O PT é um partido que tem uma quantidade enorme
de votos nos setores médios da sociedade. A classe operária,
organizada, na sua grande maioria, vota no PT. Entre o pessoal das
universidades e os estudantes, uma grande massa vota no PT. Por outro
lado, você tem um conjunto de eleitores que tradicionalmente vota na
direita. Por isso é que Maluf tem 25% dos votos, em São Paulo, apesar
de tudo que acontece, de todas as denúncias. Você tem quase que uma
cultura política. O PT começa a mudar essa coisa. Por fim, nós temos
praticamente 30% dos eleitores brasileiros que, nas últimas eleições,
ou votaram em branco, ou se abstiveram, não votam em nada. São os
eleitores que eu chamo de 'zangados': são contra mas não sabem por
quê. São contra tudo e acham que a solução está na sua rebeldia sem
critérios. Nós precisamos trabalhar essa gente. Em vez de querer
ganhar o eleitor que vai votar no Maluf, ou o eleitor que vai votar no
Fernando Henrique Cardoso, nós temos que trabalhar esses eleitores que
estão soltos, que estão mal-humorados, que falam mal de tudo e de
todos e que muitas vezes não sabem nem por que falam mal. E ainda tem
a questão dos analfabetos, que se tornam peças mais vulneráveis.
Quanto mais miserável for uma pessoa, quanto mais desinformada, mais
'presa fácil' será nas mãos de quem tem o poder de manipular. O PFL
habilmente faz uma campanha da Roseana tentando desvinculá-la tanto do
próprio PFL quanto da política. É como se fosse uma marciana que não
tem nada a ver com a política, que não tem história política no país,
que não tem nada a ver com as tradições oligárquicas do Maranhão... É
uma coca-cola nova que está aí pra ser vendida. Vai depender de nós
termos competência pra desmontar isso. É por isso que eu estou
discutindo alianças com outros partidos políticos, porque o tempo na
televisão passa a ser importante. No Brasil, não tem nada mais
ignorante e mais atrasado do que alguém achar que a inteligência de
uma pessoa está ligada aos anos de escolaridade. Não tem nenhuma
escola do Brasil que ensine política. O cara aprende a ser um médico,
aprende a ser engenheiro, mas político não. Não tem nenhuma escola que
ensine a ser presidente da República, a ser prefeito de uma cidade. Ou
o cara aprende com o acúmulo da sua experiência convivida com a
sociedade, nos embates diários, ou vai ser a mesmice que a gente vê
nesse país. Ninguém nunca perguntou, por exemplo, qual é a experiência
administrativa de Fernando Henrique Cardoso, antes da Presidência.
Qual foi? Cenap, que tinha uma receita que era 10% do sindicato dos
metalúrgicos que eu administrei. Acho que tudo isso são coisas
colocadas (e algumas que já foram superadas), mas que nós vamos ter
que trabalhar, com muito carinho. Se político precisar de um diploma,
acho que ninguém teria o PhD que eu tenho em política, nesse país.

Marilda - Como é que você está pretendendo brigar com Roseana, com o
Garotinho, pra pegar esse eleitorado insatisfeito?

Lula - Nós vamos ter que fazer uma disputa. Eu sou um candidato que
tenho uma certa dificuldade de ser vendido como produto...

Marilda - Graças a Deus, né?

Lula - Graças a Deus pra nós, que temos consciência política. Mas
muitas vezes o nosso discurso, mais ideológico, não atende às
expectativas do telespectador. Eu tenho dito pra todas as pessoas que
trabalharam comigo, em 89, em 94, em 98 e agora disse pro Duda
Mendonça: "Eu sou um ser político, quero ser vendido pelas minhas
idéias, não quero ser um objeto". Qualquer um pode ser falsificado; eu
não posso. Não posso e não quero. Tenho orgulho da minha origem, da
minha história. Se eu tiver que ser presidente, vai ser assim. Se eu
tiver que vender uma imagem que não é a minha, então não serei eu o
candidato. Se quiserem alguém diferente, alguém que fale assim ou se
vista assim, então não sou eu o candidato. Essa será a primeira
campanha a ser feita de forma profissional.

Caco - O chamado 'marqueteiro', hoje em dia, ganha eleições. Qual é a
proposta do PT em chamar o Duda Mendonça, e qual é a diferença que há
na atuação de um publicitário numa campanha do PT? Qual é o peso que
tem o marketing de imagem no PT, em relação a outros partidos?

Lula - Uma campanha bem feita foi a de 89, mas a gente nem pode
discutir 89, porque foi uma coisa tão... tão... foi muito acima das
expectativas. Ninguém imaginava que iria acontecer aquilo, de a gente
chegar no segundo turno. Mas a diferença básica é a seguinte: quando
eu falo em 'campanha profissional', é que o PT trabalhou, em 84 e 98,
de uma maneira em que o máximo que nós fizemos foram uma ou duas
pesquisas. Você fica trabalhando na base do "eu acho", do "eu penso".
Hoje, isso não é mais possível. Nem campanha salarial em sindicato é
feita assim, mais. Você precisa saber o que as pessoas estão pensando.
Temos que trabalhar com pesquisas quantitativas e qualitativas, se
possível semanais. Temos que ver cada repercussão, de cada coisa que
acontece, porque às vezes você está dizendo uma coisa que satisfaz ao
teu 'ego ideológico' mas que não tem nada a ver com o que o povo tá
querendo. O conteúdo político é intocável, porque vem de um partido
que tem história. Mas a forma de vender esse conteúdo é, como diria o
Magri, 'mexível'. Quem não tem conteúdo político vende qualquer coisa.
O Duda inventou pro Pitta aquela história do 'fura-fila'. Eu jamais
admitiria um nome assim. No mínimo inventaria um 'dá-licença'. Mas, de
qualquer forma, ele conseguiu eleger o Pitta no primeiro turno. No PT
não é possível trabalhar assim e o Duda está consciente disso. A
direção do partido apresenta um candidato, e nós queremos definir o
conteúdo e a forma de vender esse conteúdo. Eu também tenho
consciência de que não posso continuar fazendo tudo o que eu já fiz,
porque já perdi eleições. Isso significa que o que eu fiz não estava
totalmente certo. Eu não quero ficar impondo, também... Eu sou muito
teimoso, mas sei que preciso ceder. Se eu passei três eleições fazendo
o que eu quis e não deu certo, então vamos mudar. Tenho que me
submeter um pouco a pessoas que entendem tanto ou mais do que eu.

Ziraldo - Mas o Duda é caro pra burro. Com que vocês vão pagar?

Lula - Com dinheiro, ora! Pro PT, a campanha nunca é tão cara. A nossa
militância supera pelo menos 50% do custo das outras campanhas. Nós
continuamos defendendo a idéia de que uma campanha política tem que
ter financiamento público, o Tesouro é que tem que financiar as
campanhas. É a única forma de acabar com a ingerência do poder econômico.

Ziraldo - Hoje, no jornal, falava-se de uma possível aliança com o
Quércia. O que você acha disso? O que há de verdade?

Lula - Deixa eu te contar uma coisa. O PT funciona como uma espécie de
consciência crítica. Se fosse o Serra que tivesse se reunido com o
Quércia e com o Medeiros, o mesmo articulista que critica o PT estaria
se rendendo à 'competência política' do Serra: "Este é um cara
competente, é capaz de articular, de conversar". Atingir 51% dos votos
é muito difícil! Veja que mesmo o Fernando Henrique Cardoso, com o
apoio do PMDB, do PPB, do PFL, do PSDB, do PTB, de todos, só chegou a
54% dos votos. O PT não vai fazer aliança com o Quércia nem com o
Medeiros. O PT quer fazer aliança com o PMDB e com o PL. Na hora de
dificultar, começam a nomear as pessoas. O Quércia é um problema do
PMDB, não um problema meu. Uma aliança com o PMDB, aqui em São Paulo,
tira o Genoíno de 2 minutos e 75 segundos, na televisão, e o coloca
com 11 minutos. Para um candidato que só é conhecido por 6% da
população, tempo na televisão é ouro. E depois, o PMDB tem mais de
1.200 vereadores espalhados nesse estado, mais de 200 prefeitos. Por
que a gente vai deixar que essa imensidão de estrutura caia na mão do
PSDB de graça, ou na mão do Garotinho, ou na mão da Roseana? Eu, meu
caro, já cometi um erro na minha vida, que foi o de não conversar com
o PMDB em 89. E perdi as eleições por 4% dos votos, quando o Ulisses
Guimarães terminou com 5%. Eu não tenho mais chances de fazer uma
aventura irresponsável. Eu quero ganhar as eleições. Só vou poder
colocar em prática o que o meu partido pensa, o que eu penso, se eu
ganhar as eleições. Se eu perder, vou ficar lamentando mais uma vez.

Guilherme - E as conversas com o senador José Alencar, estão adiantadas?

Lula - Estão muito adiantadas. José Alencar é um grande companheiro,
sob todos os aspectos, é uma figura importante num setor importante da
sociedade brasileira, é um homem que tem um discurso nacionalista. Eu
não poderia discutir a vice-presidência sem antes saber quem vai ser o
candidato do PT. Vamos aguardar. O PT tem uma prévia em 17 de março,
quando será definido um candidato, e esse candidato vai ter muito mais
mobilidade para discutir isso.

Marilda - Você tem alguma dúvida de que o candidato vai ser você?

Lula - Eu tenho, claro. Quando a gente vai pruma disputa, não sabe o
que vai acontecer. O Eduardo Suplicy é um patrimônio do nosso partido,
uma figura queridíssima. Eu disse na convenção do PT que não moveria
uma palha pra ser o candidato do PT, que não pediria voto a nenhum
companheiro. Não é que eu não precise, é porque eu não posso. Como eu
já fui candidato três vezes, eu não tenho direito de reivindicar ser
candidato pela quarta vez. O partido tem que ter liberdade para dizer
quem é o candidato. O partido já me conhece bem, já conhece o Eduardo.

Ziraldo - O Fernando Henrique fez alianças, e a gente confiava nele.
Mas acabou refém de Jader Barbalho, de ACM, e aí acabou pra mim. Que
tipo de garantia você vai ter de que as alianças não vão emparedar você?

Caco - Pois é... Na hora de governar, como administrar as alianças?
Acho que não é possível para o PT sair entregando pedaços do governo,
como se faz normalmente: "Ministério da Educação pro PMDB, Ministério
disso pra aquele outro..." São prioridades diferentes. Como fazer?

Lula - Você não consegue governar se não tiver prioridades de governo.
E qualquer que seja o ministro, de qualquer área, deve estar ali para
cumprir uma prioridade do governo, e não do partido. Segunda
diferença: o PSDB era um saco de gatos, enquanto o PT é um partido
político com cabeça, tronco e membros. O PT sabe funcionar como
partido político, age como partido político. É por isso que o Fernando
Henrique Cardoso se subordinou demais ao PFL: o PFL era o único
partido político da aliança dele. O PSDB não era partido, era um
enorme palco de vaidades.

Ziraldo - Mas uma aliança com o PMDB não é perigosa, pra vocês?

Marilda - Você não tem medo de que ao mesmo tempo que vá carrear
alguns votos, possa perder dentro do próprio PT, quer dizer, não tem
medo que o petista tradicional fique meio desconfiado?

Lula - Eu quero aliança com setores do PMDB que não concordem com os
projetos de Fernando Henrique Cardoso. Eu quero aliança com o PL que
tem se colocado no Congresso Nacional, nos últimos quatro anos,
votando ipsis literis naquilo que também vota o PT. Eu acho que o PT
tem que fazer esse jogo para vencer essas eleições. Essa é a melhor
chance que ele tem. Um candidato precisa disso. Ou se faz aliança no
primeiro turno, ou se faz aliança no segundo turno, ou ele faz aliança
pra poder governar depois. Aliás, no exercício do governo, se você não
está num país onde a disputa política é bipolarizada, como nos Estados
Unidos ou na Alemanha, as alianças são mais necessárias, e você vai
ter que fazer muitas alianças pontuais no Congresso Nacional, sendo
maioria ou sendo minoria.

Jal - Mas se você está buscando o eleitorado do voto nulo, do voto em
branco, não sei... Esse eleitorado não está bronqueado com as coisas
que já existem? Pra eles, o PT fazer alianças não vai ser a mesma
coisa? A aliança não vai ganhar esse pessoal.

Lula - A aliança vai permitir que o PT tenha o palanque necessário pra
chegar a essas pessoas. O que não dá é o PT ir pruma campanha com dois
minutos na televisão e os adversários irem com 15, num país em que a
televisão tem muita influência no eleitorado. O ideal, o sonho de um
partido político, é ter candidato à Presidência, candidato a vice, uma
chapa de deputados só dele, governadores dele, deputados estaduais
dele... Uma chapa puro-sangue. Mas se esse ideal não é possível, vamos
ver o que é mais ou menos ideal. O PT é um partido que discute muito
essas coisas, não faz nada sem muita discussão. O que eu não posso é
ser candidato a presidente e ter um candidato no estado que vai ter 3%
dos votos porque o partido resolveu que tem que ter candidatura
própria. Esse partido, no estado, não quer que eu ganhe as eleições.
Se o partido não pode me oferecer a oportunidade de ganhar em
determinado estado, ele que construa com outras forças políticas.

Ziraldo - Que discurso você faz, pro eleitor brasileiro, pra que ele
saiba que você não vai comer as criancinhas, não vai desapropriar a
casa das pessoas, não vai confiscar dinheiro da caderneta de poupança...?

Lula - Nós vamos ter que trabalhar o seguinte: na medida em que
aparece um banqueiro dizendo que o Fernando Henrique Cardoso é o
melhor candidato para os banqueiros, eu pretendo colocar o Roberto
Marinho na televisão dizendo que eu sou o melhor candidato pros
trabalhadores. Eleição não deixa de ser uma guerra. Obviamente que,
tendo em vista os lucros que tiveram o Itaú, o Bradesco e os outros
bancos, o Fernando Henrique Cardoso não é nem pai: ele é pai, mãe,
avô, avó, tio, tia do sistema financeiro, que nunca ganhou tanto
dinheiro como está ganhando agora. Obviamente, essa gente vai querer a
continuidade. Esses são conservadores racionais, porque sabem que são
conservadores. Querem conservar o bem-bom deles. O que nós vamos
precisar é preparar nossa gente pra fazer o discurso contrário. Se um
companheiro da CUT chegar na televisão e disser: "Eu vou votar no Lula
porque se ele ganhar vamos fazer uma greve todo ano", ele não tá me
ajudando. Agora, se ele disser: "Vou votar no Lula porque ele é o
único candidato que pode sentar na mesa com os trabalhadores e
estabelecer acordos, com planos de meta para a classe trabalhadora,
discutindo a longo prazo como recuperar o poder aquisitivo,
estabelecer acordos setoriais com a sociedade e permitir que a gente
tenha uma garantia de que nada vai ser feito na calada da noite", esse
estará me ajudando. Se o companheiro João Pedro Stédile, do Movimento
Sem-Terra, repetir na campanha de 2002 o que ele disse em 1998, ele
não estará me ajudando. Ele disse: "Se o companheiro Lula ganhar as
eleições, eu não estarei na posse dele, porque no dia 1º de janeiro
estarei ocupando todas as terras do Brasil". Ele não me ajudou. Agora,
se ele disser: "Vamos votar no companheiro Lula porque acreditamos que
ele seja o único capaz de fazer uma reforma agrária tranqüila,
pacífica, sem nenhuma morte de camponês, sem precisar ter ocupação de
terra, mas feita numa mesa, negociando", aí ele me ajuda pra caramba.

Ziraldo - Ele vai fazer esse discurso?

Lula - Quando elegemos um governo de esquerda, nós não o elegemos pra
fazer com ele o mesmo que fazemos com um governo de direita. Se você
tem um governo que abre a contabilidade, onde você participa do
orçamento e ajuda a deliberar as prioridades dos investimentos do
próprio estado, é claro que você não pode tratar esse governo como
trataria um que não abrisse a contabilidade. Acho que o movimento
social tem que ser convidado a fazer uma parceria, não uma
subserviência, com o governo, mas para ajudar a estabelecer, num
governo de quatro anos, o que é que a gente quer que aconteça nesse
país, do ponto de vista do crescimento do emprego, da produção
agrícola, da melhoria da qualidade de vida. É essa a revolução que
ainda não houve nesse país. Esse é um processo difícil, mas é um
processo que nenhum outro candidato tem a qualificação pra iniciar.

Ziraldo - Desde a República que o poder é exercido pela mesma gente,
nunca houve uma mudança de comando verdadeira no Brasil. A chegada do
PT ao poder, um partido que se organizou debaixo da ditadura, seria a
primeira grande mudança na história política brasileira. Você não acha
que o discurso que deveria ser feito, pra ganhar essas eleições,
poderia ser: "Dê uma chance ao PT. Se não der certo, devolve o Brasil
para a canalha"?

Palhares - É o cúmulo do pragmatismo!

Lula - A história brasileira é assim: se você pega a Confederação do
Equador, de 1824, a revolução pernambucana de 1817 e a Inconfidência
Mineira, você vai perceber que mesmo nesses períodos
pré-revolucionários do Brasil, toda vez que alguém dizia: "Vamos
engajar os negros e os índios na nossa revolução", esbarrava na elite,
que não queria. Qual era o pretexto da elite? "Não vamos colocar nem
índio nem escravo nessa revolução, porque eles podem gostar". A elite
brasileira nunca quis que o povo participasse de nada, a não ser que
batesse palmas de longe. Em 85, tinham medo do Fernando Henrique
Cardoso. Eles não o aceitaram, até que o Fernando Henrique Cardoso
incorporou o discurso deles. Aí, o mesmo comunista ateu de 85 foi
guindado por eles à Presidência da República em 94. Essa mesma elite
que não aceitava nem o Ulisses Guimarães, que vendia o Jader Barbalho
como comunista no estado do Pará, depois que os corrompe os vende como
deuses. Qual é o desafio dessa elite? É que ela sabe que eu sou
'incomprável'. Sabe que eu tenho origem, que tenho começo, meio e fim,
sabe que eu sou o que eu sou. Se eu quisesse mudar, com a influência
política que eu tenho nesse país, já teria mudado, já teria agradado a
todos eles. Mas tenho um compromisso de origem, um compromisso em
minhas veias, que é o de fazer com que a classe trabalhadora, ao menos
uma vez, governe esse país.

Ciça - O tempo todo está aparecendo só a elite e o trabalhador. Mas em
grande parte do país, esse eleitor que você chama de 'zangado' está
dentro da classe média...

Lula - Não, não está dentro da classe média. A classe média brasileira
está mais decidida ideologicamente do que a gente pensa. Tem uma parte
que é de direita e uma parte que é de esquerda. A minha preocupação é
com uma camada enorme do povão brasileiro que está nos grotões das
periferias das metrópoles, vivendo quase num mundo-cão, nos grotões do
Nordeste brasileiro, nesses lugares totalmente à mercê dos
oportunistas, desses que vendem facilidades, que compram votos. Nós
temos que trabalhar essa gente, sem abdicar do discurso para a
totalidade da sociedade. Em televisão, muitas vezes o que fica não é o
que você fala, mas a imagem. Essa é uma campanha onde nós temos que
trabalhar não só a razão, mas também a emoção da sociedade, tentar
mexer com as entranhas de cada mulher e de cada homem, pra ver se eles
se tocam de que é possível construir um outro Brasil.

Palhares - Você participou do II Fórum Mundial Social, e a imprensa
brasileira e internacional diz que sua participação foi das mais
destacadas. E também o Instituto Cidadania, que participou de cinco
seminários importantes, acabou discutindo também a questão da
segurança, que é um drama para o Brasil. Eu gostaria que você falasse
um pouco sobre isso.

Lula - Eu fico imaginando: se o Serra ou a Roseana tivessem tido a
receptividade que eu tive no debate 'Um Outro Brasil é Possível',
teriam certamente ocupado todas as primeiras páginas dos jornais,
cinco minutos no Jornal Nacional, teriam ido ao Programa do Gugu, ao
Domingo Legal, ao Faustão. A recepção que eu tive, no final de minha
participação, foi apoteótica. . A verdade é que por onde eu passava,
naquele Fórum, as pessoas gritavam para mim: "Lula Presidente". Isso
incomoda a eles, porque não tiveram coragem de ir lá. E se fossem
seriam vaiados.
Nós fomos para o Fórum muito organizados. Fizemos um convênio com
a Carta Maior e preparamos cinco seminários: um sobre a Alca, outro
mostrando alternativas pro Brasil, outro sobre saúde e moradia, outro
sobre segurança pública e outro sobre ciência e tecnologia. Nós
produzimos aqui no Instituto o mais importante projeto de moradia já
feito nesse país. Produzimos o mais importante projeto de combate à
fome jamais feito na história desse país. Produzimos aqui o mais
importante projeto energético pra esse país. Produzimos aqui nesse
Instituto o único projeto de segurança pública desse país, que estamos
lançando agora. Esses projetos não foram construídos a partir da
contratação de três ou quatro intelectuais. Não. Todos esses projetos
envolveram grande parte da sociedade brasileira que cuida desses
temas, desde os moradores de cortiços, aqui em São Paulo, aos sem-teto
desse país, até as grandes confederações de empresários da construção
civil. Nós não queríamos construir um projeto pro PT, mas pro Brasil.
O projeto de segurança pública está pronto. Nele, pela primeira vez, a
gente redefine o papel da Federação, dos estados e dos municípios; a
gente redefine o papel da polícia, do poder judiciário, do Ministério
Público; a gente discute o problema das penas e faz uma avaliação mais
séria sobre como resolver o problema da violência no Brasil a longo
prazo. A gente descobriu que a violência está onde não tem a figura do
Estado, onde não tem escola, onde não tem creche, onde o aparelho de
Estado, seja municipal, estadual ou federal não está presente. E,
obviamente, estamos convictos que a violência está relacionada à pobreza.

Tibúrcio - Um aspecto para o qual a mídia nunca vai dar importância é
que essa colaboração do Instituto Cidadania, suprapartidário, na
produção desses projetos – que consumiram mais de dois anos de
trabalho, cada um deles – significa a possibilidade da criação de
programas de governo sem ser de modo artificial, reunindo de última
hora meia dúzia de pessoas pra escreverem qualquer coisa. Esses
projetos subsidiarão programas de governo, em especial do PT.

Caco - A proposta é integrar as polícias?

Lula - Sim. Não a mera unificação da polícia, mas a criação de um
sistema único de polícia. Agora, por exemplo, no caso do Celso Daniel,
não tem nenhum sentido ter a polícia federal, a polícia civil e a
polícia militar brigando entre si. Não há um comando único que
determine as funções de cada uma. Precisamos que elas sejam
complementares e não antagônicas.

Ciça - Neste projeto está incluído o sistema carcerário, essa fábrica
de aprimoramento de criminosos?

Lula - Na nossa concepção, o sistema prisional no Brasil não tem como
objetivo recuperar os recuperáveis. Um jovem que entra na Febem sai de
lá pós-graduado em bandidagem, porque a irracionalidade é muito
grande. Hoje, gasta-se quase R$ 750 por preso, no Brasil, por mês. E o
salário-mínimo é R$ 181. Você gasta, com uma criança da Febem, por
mês, R$ 1.800. É um desatino achar que pode recuperar uma criança ali,
fora da família. O problema dessa criança está na origem, está dentro
de casa, no comportamento do pai, da mãe, na degradação da família
brasileira. Ou seja, era melhor gastar R$ 300 com essa família, e
tentar recuperá-lo junto com a família, co-responsabilizando a família
na recuperação desse jovem.

Ziraldo - Você conhece o trabalho da Pastoral da Criança, não conhece?

Lula - Conheço, conheço. Todo trabalho voluntário é fantástico, mas é
um grão de areia no deserto. Se o Estado não entrar nisso, não tem
solução. Tem que ser política de Estado. Como é que você combate o
crime? Colocando mais polícia na rua? Se depender do povo, cada um
quer um policial em sua porta de casa. Nós é que temos que dizer para
a sociedade: "Se quisermos ter, daqui a dez anos, uma cidade menos
violenta, e já que não podemos investir tudo em polícia, a prefeitura
vai investir em educação, em cultura, em lazer, em esporte". Vamos dar
perspectivas para essas crianças. Vamos juntar União, estado e
município pra discutir como arrumar emprego para esse jovem, como
facilitar a vida daquele que quer estudar e não pode. Nós temos uma
violência que é resultante do grau de empobrecimento das pessoas. Tem
ainda a degradação dos valores da família, e tem também o narcotráfico
e o crime organizado. O crime organizado tem um braço político, tem um
braço policial, econômico, judiciário. O Hildebrando, do Acre, era
coronel da Polícia Militar, era deputado federal, não era qualquer
coisa, não. Lidar com um criminoso desse não é como lidar com um
bandido da favela.

Ziraldo - Lula, você tem um prestígio internacional que nenhum
presidente tem. Esse medo do teu governo é criado aqui dentro. Isso
tem que ser dito.

Lula - Na verdade, o preconceito é vendido de fora pra dentro. O
preconceito aqui é uma coisa cultural, arraigado. Ele 'pega' nas
pessoas que já estão preconcebidas a terem preconceitos. No Brasil,
não há preconceito contra o negro rico, só contra o negro pobre; não
tem preconceito contra o nordestino rico, só contra o nordestino
pobre... É um preconceito de classe, econômico. Pode ser o maior
ladrão desse país, e todo mundo pode saber que ele é ladrão, mas se
ele é rico, transita nas altas esferas da sociedade, é convidado pra
tudo que é festa, sem o menor problema. Esse preconceito será quebrado
pela própria sociedade, com o tempo. Não é fácil. Há pessoas que têm
raiva do PT porque o PT conseguiu ser o que eles nunca foram. Eu fico
imaginando o companheiro Brizola... O que ele pensa do PT? O PT é tudo
o que ele sonhou em criar como partido político, na vida. Fico
imaginando o Roberto Freire. Também não posso lutar contra isso a vida
inteira. O meu filho é o que eu consegui gerar, nem mais bonito nem
mais feio.

Ziraldo - Chegando ao segundo turno, você acha que ganha a eleição?

Lula - Essa é outra bobagem, Ziraldo. Eu lembro que em 89 as pesquisas
diziam que se Mário Covas fosse pro segundo turno ganharia de todo
mundo. E Mário Covas não foi nem pro segundo turno, teve 12% dos
votos. A maior cretinice é você fazer pesquisas pro segundo turno
antes de ter havido o primeiro. É outro jogo. Quando começou o
Campeonato Brasileiro, as pesquisas diziam que na final ia dar
Flamengo, Corínthians, Vasco, Palmeiras... E deu Atlético Paranaense e
São Caetano. Essas coisas, meu caro, são utilizadas muito mais pra
trabalhar o efeito psicológico na opinião pública.

Marilda - O PT sempre defendeu as minorias. Embora as mulheres de fato
sejam maioria, nós ainda temos muitos problemas. O que a mulher
brasileira pode esperar do Lula presidente?

Lula - Um presidente não pode fazer nada especificamente pela mulher,
quem vai ter que fazer vai ser o Congresso Nacional. Aliás, tudo já
está na Constituição. Ela já diz "trabalho igual, salário igual", diz
que não deve haver discriminação. Mas nós sabemos que há um problema
cultural mais sério, que vem de dentro de casa, que é milenar, que é a
mulher ser tratada como objeto. Fizemos uma pesquisa recentemente, com
a Fundação Perseu Abramo, e vimos que embora as mulheres sejam hoje em
média 40% das responsáveis por tomar conta do orçamento da família, na
repartição do trabalho caseiro a mulher fica com 92% e o homem só com
8%. Se você não resolver esse problema a partir daí, se o seu
companheiro não tiver essa evolução, por si só as coisas não se
resolvem, não basta ter lei. A maioria dos casos de violência contra a
mulher acontece dentro de casa, e isso é uma coisa que precisamos
cuidar com muito carinho. É preciso legislação forte, mas sobretudo é
preciso acreditar na educação. Na escola deveria ter matéria sobre
cidadania, deveria ser parte do currículo escolar aprender sobre
direitos e deveres. Pra todas essas coisas sobre as quais nós
conversamos, nós temos que pensar em 15, 20 anos. Temos que sonhar com
a nova geração.

Opiniões

Ulisses Guimarães

Se formos pegar o período mais recente, vemos que a indicação do
Tancredo Neves via Colégio Eleitoral foi um golpe no Ulisses
Guimarães. Os estrategistas da política nacional diziam que não daria
pra ter eleições diretas, porque senão o presidente seria o Ulisses, e
os militares não o aceitariam. Eu lembro de uma cena, em que eu fui na
casa do Ulisses e ele estava deitado, na cama. Eu fui convidá-lo pra
continuar a luta pelas Diretas. Ele falou assim pra mim: "Eu sei
quando estou derrotado". No meio da Campanha das Diretas, acontece
aquela mudança em direção a Tancredo Neves. Por quê? Porque Tancredo
Neves era palatável ao regime militar, e o Ulisses não. Essa é a
história do Brasil.

Tancredo Neves

Aí se inventou, no meio das Diretas, o nome do Tancredo. Eu me
lembro dele, pegando na minha mão, na Praça da Liberdade, perguntando
pra mim: "E agora, o que é que a gente faz com esse povo?" O coitado
não teve nem chance de fazer alguma coisa, porque morreu. No entanto,
ele foi uma opção preferencial da direita. Mas ele já tinha feito
alguma coisa antes? Alguém lembra? Ele foi primeiro-ministro, foi
governador... Mas alguém lembra de algum grande feito? Eu acho que ele
era uma pessoa inteligentíssima, afável ao extremo. Mas como político,
não tinha nenhum grande feito.

Fernando Henrique Cardoso

Quantos aqui não acreditavam que Fernando Henrique pudesse fazer
um bom governo? Eu mesmo cheguei a acreditar que ele tinha se juntado
ao PFL por uma questão tática. Ele nunca foi de esquerda, nunca foi.
Ele era charmoso, um democrata, uma figura simpática...
Em 78, eu e os sindicalistas o chamamos para apoiá-lo como
candidato ao Senado, e não me arrependo. Tem gente que tem vergonha de
dizer essas coisas, mas eu não. A gente deve avaliar política no
momento em que acontece o fato.

Garotinho

Quantas mulheres maravilhosas e homens maravilhosos não se
separam? O casamento não deu certo! Nem todo noivo, quando casa,
continua sendo o noivo que era. A mulher começa a descobrir que o cara
tem chulé, que arrota na mesa... Eu nunca deixei de casar por ter medo
que o casamento não desse certo. O Garotinho foi garotinho na relação
com o PT, ele não foi sério. Quando, na convenção do PT, o Garotinho
disse que já tinha o "PT da boquinha", ele disse isso pra evitar que a
Benedita fosse aprovada na Convenção, já que ele não queria ter uma
prefeita do PT no calcanhar dele. Aí, se a opção é você ficar como
aquele casal que só está junto pra mostrar pros outros, sem estar bem,
é mais digno separar.

Votos

Votar em Jader Barbalho em 82 era lutar contra Nunes e Jarbas
Passarinho. Votar em Quércia em 74, aqui em São Paulo, era lutar
contra Carvalho Pinto. Eu não me arrependo desses votos, não. Em cada
momento político a gente reage, ideologicamente, politicamente, de
acordo com a conjuntura. Eu não tenho o menor problema em dizer que
votei no Mário Covas em 94, no segundo turno. Eu não votei no Fleury,
mas minha mulher votou, e com razão. Ela tava certa e eu tava errado.
Nesse país, lamentavelmente, você tem que fazer tudo pra derrotar
figuras como Maluf, na política. O PT apresentou candidato, e o
candidato não entrou. Aí, o que é que você vai fazer? Vai ficar como
menininho zangado e anular o voto? O equívoco nosso não foi ter votado
em Mário Covas no segundo turno, em 94 e em 98. Nosso equívoco foi ter
votado no Mário Covas e não ter exigido dele metade do governo. Até
porque você prepara a mesa, coloca o pão, coloca o café, a manteiga,
parte o queijo... E depois cruza os braços e diz: "Eu não quero comer".


Instituto Cidadania
http://www.icidadania.org.br

O Instituto Cidadania é herdeiro direto da experiência do Governo
Paralelo, que se estruturou sob a liderança de Lula entre 1990 e 1992
para exercer fiscalização democrática sobre o governo Collor e
apresentar propostas alternativas de políticas públicas. O Instituto,
em dez anos de atividade, contribuiu para que a oposição exercida em
nome da cidadania, dos trabalhadores e dos excluídos tivesse maior
alcance e ressonância, oferecendo propostas concretas e alternativas
às iniciativas governamentais oficiais.
Atualmente, além de projetos de políticas públicas, o Instituto
promove seminários abertos e dirigidos e debates, e publica boletins e
os Cadernos de Cidadania, além de publicações especiais. As principais
publicações são o documento síntese do Projeto Fome Zero – Uma
proposta de política de segurança alimentar para o Brasil (outubro de
2001), o Projeto Moradia (maio de 2000), os pequenos cadernos
Socialismo em Discussão, com ensaios de autores como Tarso Genro,
Edmilson Rodrigues, José Dirceu, José Genoíno, Francisco de Oliveira,
João Pedro Stédile, Leandro Konder e Frei Betto. Outro documento
importante são os dois livros e o vídeo relatando as famosas Caravanas
da Cidadania, que tiveram início em 1993.

Fonte: Pasquim21 número dois

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